Fazer as pazes com as finanças desenvolve coragem para desafiar as ideias preconcebidas sobre elas
Não sei você, mas nem sempre fui um amigo leal do dinheiro. Cresci admirando-o e desejando-o a partir dos brinquedos sofisticados que meu melhor amigo ganhava de seu pai; olhei-o com estranheza durante o fim da adolescência; blasfemei-o nutrindo certa inveja de quem cuidava melhor dele no início da vida adulta; depois, desrespeitei seu papel social e a necessidade de equilíbrio solicitado para, enfim, compreender que essa relação com ele é, acima de tudo, um espelho das inseguranças, medos e crenças arraigadas que moldam a nossa autoimagem e autovalor.
Tais impressões têm suas raízes na complexa interseção entre a sociedade, a cultura, a história pessoal e as experiências individuais. De modo geral, começam a se formar desde a infância, por meio das mensagens que recebemos de nossos pais, familiares, educadores e pela influência da sociedade.
À medida que crescemos, absorvemos ideias preconcebidas sobre o valor do dinheiro, a busca da riqueza e os conceitos de sucesso financeiro. No entanto, muitas dessas crenças são forjadas por narrativas culturais que nem sempre refletem a realidade de maneira precisa.
Vejamos um exemplo: “O dinheiro é a raiz de todo mal”. Essa frase é uma variação de uma passagem bíblica que se encontra no Novo Testamento, na Epístola de Paulo a Timóteo. O trecho original, contudo, é um pouco diferente e não condena o “vil metal” em si, mas o “amor ao dinheiro” ou a busca obsessiva e egoísta da riqueza como único objetivo.
Até porque os cifrões, por si só, não são bons nem ruins. Apenas um meio de troca, um recurso que pode ser usado de maneira construtiva ou destrutiva a partir das intenções e valores de quem o utiliza. Concorda?
O dinheiro não traz felicidade
Conversando com Gaya Machado, especialista em Desenvolvimento do Potencial Humano, palestrante e doutoranda em Psicologia, refleti sobre o choque entre a aspiração à prosperidade e o medo da falta que cria uma tensão constante em nosso relacionamento com as finanças.
“À primeira vista, a grande maioria das pessoas quer ter uma boa relação com o dinheiro, mas muitos de nós crescemos e desenvolvemos crenças de escassez que podem nos impedir de alcançar esse objetivo. Lucrar sem um propósito conectado a essa meta pode ser uma armadilha retroalimentada por uma busca incessante pela dualidade entre nunca ter o suficiente e sempre precisar de mais”, enfatiza.
A especialista vai além ao explicar que os ensinamentos equivocados que recebemos em relação à economia pessoal, se não confrontados com outros pontos de vista, se tornam condicionamentos, que acabam gerando respostas automáticas relacionadas ao assunto.
“Se crescemos ouvindo que ‘dinheiro não traz felicidade’ ou que ‘rico não é gente do bem’, por exemplo, podemos desenvolver crenças que nos levem a uma relação não saudável com as cifras, baseadas em objetivos aparentemente nobres – ter felicidade e ser uma boa pessoa”, sublinha. Felizmente, essa matriz mental pode ser reprogramada de maneira consciente.
Não sou merecedor
No labirinto das nossas crenças financeiras, uma das mais poderosas e limitantes é a ideia de que, de alguma forma, não merecemos prosperar. Na prática, esse modo de ver as coisas funciona como uma âncora invisível que nos impede de alçar voo.
A raiz do problema, como alerta Thiago Godoy, colunista do portal Vida Simples e conhecido como Papai Financeiro, está muitas vezes relacionada à autoestima e à autopercepção. Educador financeiro, mestre pela FGV-SP e autor do best-seller Emoções financeiras – Um guia para transformar a sua relação com o dinheiro em liberdade (Gente), ele ressalta que não se pode generalizar, já que há pessoas que enriquecem, mesmo tendo sido expostas a uma visão escassa em relação à vida financeira. “E, por isso mesmo, ela consegue lutar e sair desse ecossistema. Mas é a minoria, porque, na média, a pessoa vai acabar replicando aquilo com que ela entrou em contato”, diz.
Dinheiro, autoestima e crenças
Para superar esse cenário desfavorável, o essencial é trabalhar na construção da autoestima, identificando conscientemente qual é o ponto nevrálgico. Por isso, Thiago, que estudou 400 famílias endividadas buscando entender as origens comportamentais e emocionais do desequilíbrio financeiro, tenta mostrar a quem o procura ou o lê que o processo de autoconhecimento é alguns degraus mais profundo do que simplesmente trazer uma solução pronta.
“Você vai entender de fato as suas reações às coisas que acontecem, as origens das suas frustrações ou por que está comprando coisas que não pode pagar para mostrar às pessoas que você tem um status que não tem”, exemplifica.
O economista e psicanalista Fabiano Calil, por sua vez, destaca que o dinheiro pode ser um sintoma da relação entre autoestima e crenças, mas nunca a causa, já que esta reside no ser humano, nas suas questões. “Então, me autoconhecer, me revisitar, ressignificar é um dos caminhos, sim, para que a gente possa retomar essa capacidade de um caminhar no qual uma das consequências será o prosperar”, propõe.
Descontrole financeiro
Um perfil comum relacionado às crenças financeiras é o das pessoas que, movidas por ansiedade ou medo, acabam por gastar impulsivamente. Aquelas que se entregam à indulgência, especialmente em momentos infelizes, são cativadas pelo apelo fugaz de conforto e gratificação. No entanto, essa busca muitas vezes carrega consigo uma sombra que paira sobre a saúde bancária no longo prazo. E que pode ser temerária.
No final das contas, é um modo de usar o dinheiro como válvula de escape para as frustrações.“A pessoa que vive nesse embaralhamento acaba causando outros problemas. Então, ela precisa realmente buscar ajuda se o nível de compulsão está extrapolando”, alerta Thiago.
A seu ver, o autoconhecimento é o ponto de partida para a reflexão: de onde eu vim, onde eu estou e para onde vou?; a atitude é a maneira como você enxerga as coisas e reage a elas; e, por fim, a autorresponsabilidade tem a ver com a consciência de que, a despeito do que nos aconteceu, caberá a nós solucionar os nossos problemas. Incluindo a maneira como lidamos com o fluxo monetário em nossa história.
Prósperas, mas sovinas
Às vezes, quando olhamos para pessoas prósperas, é fácil presumir que elas estão desfrutando plenamente de suas posses. No entanto, não notamos em muitas delas as marcas invisíveis dos traumas ligados à escassez. Feridas que podem desencadear comportamentos de avareza, revelando uma complexa dualidade do ser humano.
Essas cicatrizes emocionais atuam como correntes que impedem a livre expressão da prosperidade, pois o medo arraigado da penúria passada cria uma armadura em torno da capacidade de desfrutar das conquistas materiais, levando à acumulação excessiva e ao sacrifício de experiências de vida significativas e prazerosas.
Mas podemos aprender a transcender esses traumas do passado. A certa altura da investigação interior, será possível entender que a verdadeira riqueza não está apenas na quantidade de dinheiro que acumulamos, mas em nossa capacidade de encontrar equilíbrio entre segurança financeira e alegria de viver. É uma jornada de autoaceitação e cura.
Olha a inveja aí
Outro enigma intrigante da psicologia humana é o dilema entre a expansão patrimonial e o medo da inveja alheia. Muitas vezes, a ambição de ganhar mais colide com o receio de se tornar alvo da cobiça por parte daqueles ao redor.
Pode ser que você nunca tenha pensado nisso, mas o medo da inveja alheia muitas vezes emerge de um desejo profundo de pertencer e de evitar a alienação social. Assim, embora o anseio de progredir e prosperar seja intrínseco ao humano, a necessidade de aceitação e conexão com outros é igualmente poderosa.
Reconhecer o medo da inveja alheia não apenas como uma fraqueza, mas como um lembrete para praticar a gratidão, a humildade e a empatia enquanto nos empenhamos para ter prosperidade, com certeza irá alargar nossa compreensão da riqueza, do sucesso e, acima de tudo, do ser humano.
O dinheiro corrompe
Há quem tenha medo de prosperar por ter cristalizado a visão de que o dinheiro corrompe as pessoas. Realmente, não faltam exemplos disso. Entretanto, podemos evitar que nossa conta bancária dite nossos valores e ética, mantendo nossos princípios enquanto a utilizamos como meio para alcançar nossos objetivos.
Afinal, nossos recursos monetários também podem ser uma ferramenta para o bem, quando os utilizamos para investir na educação, apoiar causas nobres, aliviar o sofrimento de outros e melhorar a qualidade de vida.
Crença nenhuma é uma sentença definitiva, mas um convite para a reflexão sobre como podemos fazer da vida financeira uma aliada confiável para o nosso florescimento e impacto positivo no mundo.
Por Gustavo Ranieri – revista Vida Simples
Jornalista e, depois de muitas intrigas, sente-se hoje bem mais íntimo do dinheiro e em maior harmonia com a energia que ele representa.