Projeto, o maior do país com suínos, usa dejetos para produzir eletricidade por biogás
O ditado diz que focinho de porco não é tomada, mas esses animais podem gerar muita energia. Se todas as granjas do país convertessem o cocô e o xixi dos porcos em biogás para energia elétrica, além de zerar um passivo ambiental, seria possível abastecer quase 10% das residências rurais do país.
A estimativa é da Eva Energia, empresa do grupo Urca e da GNPW, com sede no Rio, especializada na produção de energia elétrica por biogás, tomando como base o projeto que instalou e mantém na Fazenda Mano Julio, em Mato Grosso. Hoje, a iniciativa é o maior parque gerador brasileiro de energia elétrica a partir do dejetos de suínos, num investimento de R$ 25 milhões.
“A criação de suínos é fonte abundante de energia que o país ainda não aproveita devidamente, e estamos falando apenas de suínos. Ainda temos muitas outras alternativas no agro”, afirma Bernardo Pater, CEO da Eva Energia.
A Mano Julio, da família Franz, é um colosso do agronegócio. Juntando todas as atividade sob o guarda-chuva da marca, produz soja, milho, algodão, arroz, eucalipto, gado de corte, frangos, ovos e suínos, e ainda fabrica ração. Os sistemas da Eva estão nas fazendas de Paulo Franz, que somam 40 mil hectares espalhadas por sete municípios —o equivalente a 40% da cidade de São Paulo.
O empresário Paulo Franz chegou a Mato Grosso em 1995, depois de se formar em ciências de animais pela Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. No inicio dos anos 2000, quando os empreendimentos cresciam, se preocupou em encontrar alternativas para os dejetos dos porcos, cujo impacto é nefasto para o ambiente. Já na época, queria gerar energia.
“A gente sempre teve preocupação ambiental porque o meu desejo é que meus filhos deem continuidade a essa minha atividade, e não quero que lá na frente um neto meu diga que avô fez besteira”, afirma.
Homem viajado, como se diz no interior, Franz vai muito aos Estados Unidos e países europeus. Primeiro, buscou tecnologia no exterior. Ao longo dos anos foi ficando claro que produzir eletricidade com biogás podia não ser nenhuma novidade científica, mas calibrar equipamentos e toda uma operação com escala, para a realidade do Centro-Oeste brasileiro, era outra conversa.
Tentou implantar biorreatores com a Universidade de Berlim, utilizados para produção de biogás em propriedades menores na Alemanha. Era caríssimo para as dimensões locais. Fez parceria com americanos que vislumbraram o potencial para sequestrar carbono, num dos primeiros projetos do gênero numa fazenda brasileira, adotando biodigestores de modelo canadense, com lonas. Não decolou. Receberam também chineses, que há décadas usam biogás no interior de seu país. Nada.
“Historicamente, os sistemas foram feitos para regiões mais frias e propriedades menores. Não conseguimos nada, nem em nível de universidades nacionais, onde era zero o conhecimento em suínos para os volumes com que trabalhamos”, conta.
O grupo Urca já era conhecido pela geração de eletricidade dos aterros sanitários. Tem a maior planta de produção de biometano da América Latina, em Seropédica, no Rio. Mas Pater conta que foi preciso fazer laboratório para afinar um projeto tão grande.
“Do final de 2019, quando iniciamos, até a instalação completa no final de 2022, o trabalho foi intenso para testar equipamentos e processos. Literalmente, criamos uma nova rede de fornecedores e um modelo de produção”, explica o CEO da Eva.
A Folha visitou as instalações e viu o desafio técnico e logístico do sistema que está em plena operação há um ano e meio.
O plantel tem um estoque 340 mil animais, que estão abrigados em quatro complexos de granjas, nos municípios de Sorriso, Itanhangá e Ipiranga do Norte. No total, os porquinhos abastecem 47 biodigestores para sustentar quatro usinas que somam uma capacidade instalada de 2,5 MW (megawatts).
Basicamente, dutos levam o material orgânico dos leitões para biodigestores, que nada mais são que câmeras fechadas, onde o material fermenta, liberando biogás. A parte líquida do processo vira biofertilizante, que é canalizado para uso em campo, e o gás segue por novos dutos para a usina de geração de energia nas usinas (veja figura).
As equipes da Eva em cada usina conversam diariamente com os responsáveis pelas granja para que o fluxo seja contínuo, e a produção de energia ocorra sem interrupção, 24 horas por dia. A operação gera 17 toneladas de biogás por dia, evitando que 3,6 mil toneladas de metano, potente gás de feito estufa, sejam liberadas na atmosfera.
A produção se enquadra na modalidade de GD (geração distribuída), em que os consumidores bancam o projeto e utilizam a energia, sozinhos ou associados em cooperativas ou consórcios, com a alternativa de injetar o que sobra na rede da distribuidora local de energia. Atualmente, a Mano Julio fica com 1 MW e o restante é utilizado por empresas parceiras. Numa analogia, chega à rede energia suficiente para manter 5.000 residências.
Existe, sim, um padrão nesse processo de produção, lembra Rafael González, diretor presidente do CIBiogás (Centro Internacional de Energias Renováveis) e vice-presidente do conselho de administração da Abiogas, entidade que reúne empresas da área. No entanto, ele explica, vários itens fazem a diferença para a qualidade e até a viabilidade do produto final.
O poder de geração energética, por exemplo, depende da qualidade do manejo dos animais. Uma simples vacina pode afetar a geração de energia. O tipo de granja é outro fator. Uma coisa é ter o ciclo completo, com matrizes e filhotes, outra é fazer apenas engorda.
A retirada dos contaminantes naturais do biogás importa demais. Sem a devida limpeza, o biogás danifica os motores que geram energia elétrica.
“Foi preciso trilhar um certo amadurecimento tecnológico, e posso dizer que só nos últimos cinco ou seis anos houve aprimoramento necessário para a eficiência dos equipamentos e do controle dos processos. Projetos mais antigos sofreram com o pioneirismo.”, diz González.
Apesar de ter o maior projeto, Mato Grosso ainda tem um imenso potencial a explorar. Segundo o Panorama CIBiogás de 2023, o mais recente, o país tinha 1.365 plantas de biogás cadastradas, sendo que 1.096 delas, 80% do total, estavam associadas ao agronegócio, e 1.184 , 86%, dedicadas à geração de energia elétrica. O Paraná liderava o ranking dos estados com 54% das plantas. Mato Grosso, em oitavo lugar, tinha 9% do total(Estadão, 21/9/24)