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Deixar de amar alguém é motivo suficiente para se divorciar?

Permitido em todos os Estados americanos há quase 50 anos, o divórcio imotivado é motivo de debate em várias partes do país.

Costuma-se dizer que “primeiro vem o amor, depois vem o casamento”. Mas nem todas as pessoas concordam.

É cada vez mais contestada a ideia de que o amor é o motivo mais importante para se casar – ou, pelo menos, para permanecer casado.

Nos Estados Unidos, legisladores e especialistas republicanos vêm rejeitando a possibilidade de divórcio imotivado. Eles questionam a noção de que deixar de amar o parceiro é uma razão válida para pôr fim a um casamento.

Como professora de direito da família, sei que estas opiniões não são novas.

A atriz e socialite Zsa Zsa Gabor (1917-2016), certa vez, fez o seguinte gracejo: “Divorciar-se só porque você não ama um homem é quase tão insensato quanto se casar com um apenas porque você o ama.”

Gabor provavelmente estava brincando, mas o ataque republicano ao divórcio é sério.

A história do divórcio nos EUA

Na maior parte da história dos Estados Unidos, era difícil conseguir o divórcio.

Em muitos Estados, ele era terminantemente proibido, enquanto outros permitiam a separação dos casais apenas em circunstâncias muito limitadas – normalmente, casos de crueldade, deserção ou adultério.

Por isso, os casais infelizes que não conseguiam comprovar esses motivos não encontravam uma saída.

Em 1969, a Califórnia passou a ser o primeiro Estado a permitir o divórcio imotivado. Com isso, um dos cônjuges podia conseguir o divórcio simplesmente apresentando o pedido, sem precisar comprovar que seu parceiro havia feito algo de errado.

Depois da aprovação na Califórnia, seguiram-se rapidamente os demais Estados americanos.

Em 1977, 47 Estados permitiam essa espécie de divórcio e, em 1985, todos os 50 Estados americanos permitiam algum tipo de divórcio imotivado.

Mas, agora, quase 50 anos depois, surgem cada vez mais questionamentos a este respeito nos Estados Unidos.

A questão do divórcio imotivado voltou a ganhar atenção nacional em 2023, quando o comentarista conservador Steven Crowder, que se vangloria das suas opiniões “provocadoras”, expressou sua indignação e incredulidade porque sua esposa poderia se divorciar dele sem seu consentimento.

Crowder não é o único a apresentar essas críticas. O divórcio passou a ser uma questão polêmica entre muitos legisladores nos Estados de maioria republicana.

Mais recentemente, em janeiro de 2024, o senador de Oklahoma Dusty Deevers apresentou um projeto de lei para eliminar o divórcio imotivado. Ele sugeriu a “humilhação pública” dos cônjuges que cometerem falhas conjugais, seguida pelo divórcio.

A restrição ao divórcio imotivado também faz parte das plataformas do Partido Republicano do Texas e de Nebraska. Ela também foi debatida recentemente por legisladores da Louisiana.

A possibilidade de se divorciar, independentemente do que deseja a outra parte, é a essência do divórcio imotivado. Acho alarmante que ele esteja sendo questionado.

Mas a ideia de que não amar mais é uma razão válida para o divórcio deve ser considerada. Ela se baseia na noção de que o amor é o propósito do casamento e esta ideia, por si só, é questionável.

Para que serve o casamento, afinal?

O casamento é um estado civil que confere direitos e benefícios importantes para os cônjuges. E esses direitos e benefícios não têm nenhuma relação com o amor.

De fato, o propósito dessas vantagens é oferecer aos casais outras razões, além do amor, para se casarem. A ideia é que os benefícios sociais do matrimônio sejam tão significativos que justifiquem o incentivo ao casamento, ou até o pagamento puro e simples às pessoas para que se casem.

Para dar um exemplo dessa análise de custo-benefício, vamos considerar o debate político que analisa se os filhos se saem melhor sendo criados por dois pais casados.

No seu recente livro The Two-Parent Privilege: How Americans Stopped Getting Married and Started Falling Behind (“O privilégio dos dois pais: como os americanos pararam de se casar e começaram a ficar para trás”, em tradução livre), a professora de economia Melissa Kearney defende que esta é uma vantagem abrangente e significativa.

Não surpreende que o trabalho de Kearney tenha sido entusiasticamente endossado pelos defensores pró-casamento e revigorado antigas discussões sobre como incentivar as pessoas a se casarem.

Se as crianças se saem melhor quando são criadas por pais casados, é compreensível que o governo crie leis e políticas para promover o casamento. Isso também explica por que o governo pode buscar limitar os divórcios.

Esta é uma visão puramente instrumental do casamento, que teria parecido muito familiar para os americanos dos séculos 18 e 19.

Na maior parte da história americana, o casamento foi abertamente uma transação. As leis essencialmente garantiam que a maior parte dos homens e mulheres se casassem e o amor não tinha nada a ver com isso.

‘Barganha conjugal’

Os historiadores se referem ao casamento para obter benefícios legais e financeiros como a “barganha conjugal”.

Mas, no final do século 19, a aceitação da natureza comercial da barganha conjugal começou a desaparecer. Homens e mulheres começaram a declarar publicamente que o amor era o propósito do casamento.

Como a historiadora Nancy Cott escreve no seu livro Public Vows (“Votos públicos”, em tradução livre), na virada do século 20, a cultura americana havia “colocado o amor e o dinheiro em lados opostos da rua”.

Meu livro, You’ll Do: A History of Marrying for Reasons Other than Love (“Você dirá ‘sim’: a história do casamento por outras razões além do amor”, em tradução livre), também examina esta história e mostra como os americanos deixaram de incentivar a barganha conjugal e passaram a considerá-la prejudicial, tanto para os casais, quanto para a instituição do matrimônio como um todo.

Apesar da visão pública de que o amor é a única razão para se casar, a lei tem uma abordagem mais prática e reconhece que o amor sozinho pode não ser suficiente para levar os casais ao altar.

É por isso que a legislação continua a incentivar o casamento por razões instrumentais. Seus benefícios variam de isenções de impostos e preferências de imigração até defesas na legislação criminal.

Quando o casamento era uma clara barganha por trocas, os benefícios da união eram óbvios.

Como no anúncio conjugal do século 19, “Homem com fazenda procura mulher com trator”, cada um dos lados sabia o que estava recebendo. Agora, o objetivo do casamento já não é tão claro.

Acredito que o movimento para a eliminação do divórcio imotivado seja simplesmente o sintoma mais recente dessa confusão sobre os objetivos do casamento.

Se o casamento for questão de amor, a falta de amor deveria ser, então, a razão do divórcio por excelência. Mas, se o casamento for um contrato com benefícios, não surpreende que Crowder e outros críticos do divórcio imotivado fiquem indignados pelo casamento poder ser dissolvido unilateralmente.

A disposição de eliminar o divórcio imotivado é apresentada como uma luta sobre o propósito do divórcio. Mas, na verdade, trata-se de uma luta sobre o significado do casamento.

* Marcia Zug é professora de Direito da Família da Universidade da Carolina do Sul, nos Estados Unidos.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.

Conteúdo extraído: BBC NEWS

Marcia Zug – The Conversation*
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